A relação criadora

É muito comum, ao falar sobre aulas de canto, ouvir de algumas pessoas “ah, mas eu não tenho voz para isso”. Então eu sempre digo que só dá para saber mesmo do que uma voz é capaz quando trabalhamos, viramos a voz do avesso e descobrimos todas as suas possibilidades, logo não cabe condenar nada antes de sequer tentar; mais ainda, digo que tal qual um instrumento, a gente sempre pode aprender melhor a manuseá-lo, então não há impossibilidades para ninguém, todo mundo pode tirar grandes benefícios deste universo, por mais que nem mesmo tenha vontade de se aventurar no karaokê. Mesmo que a maior parte das pessoas não se encaminhe a um professor no dia seguinte, esta observação sempre as faz se sentirem melhores. É como se eu tirasse delas o rótulo de “condenado” que alguém, não sei como nem porquê, lhes deu. A voz é produto de um equipamento que nasceu conosco. Nos primeiros momentos da nossa vida, não tínhamos a menor noção do que fazíamos e fomos descobrindo a passos de bebê como usá-la. Isto, aliás, deveria amenizar nossa pressa na hora de trabalharmos nossa técnica. Sim, a gente não se lembra, mas sabe que não foi de um dia para o outro. E isto se refere, de certa forma, a um outro assunto antigo.
É importante salientar que nenhum dos órgãos envolvidos na produção da voz tem como esta a sua função principal; tudo que fazemos se trata de uma adaptação. Mais ainda, tais mecanismos estão inseridos em um organismo maior, que é a convergência de processos vitais, mentais e psicológicos — além daqueles que não sabemos nomear. Os efeitos da tristeza, da alegria, do cansaço e até da má alimentação são amplamente conhecidos. A voz, então, não possuiu um âmbito definido. Não bastam ouvido educado e senso crítico para a função; requer conhecimento, que não é pouco nem limitado. Não à toa, as alianças com fonoaudiólogos, médicos, sejam estes especializados em garganta ou não, e, mais ainda, com cantores, de estilos diferentes , que busquem outras sonoridades e que venham de outras escolas é extremamente enriquecedora. O conhecimento é o tempo todo colocado em xeque e precisa ser revisto e questionado constantemente. Isso porque cada voz é um organismo separado, com propriedades e possibilidades específicas, da mesma maneira que cada um de nós é único. Sempre haverá alguma — ou muitas — fuga das regras e das convenções.
Exatamente por sermos cada um único, não há uma técnica que seja universal, uma única chave capaz de abrir todas as portas para libertar a expressão de cada organismo. Assim como cada trato vocal tem suas características próprias para funcionamento, cada técnica vocal é construída através da vivência de cada indivíduo. Não à toa, os professores não são universais; existem aqueles com quem rendemos mais, e outros com quem rendemos menos, e isso não necessariamente está ligado à competência de quem ensina — nem mesmo de quem aprende. Penso que aulas de técnica vocal se assemelham a uma terapia, em que o profissional simplesmente orienta seu paciente a um processo, mas quem percorre todo o caminho mesmo é aquele que está em tratamento. Assim, então, podemos nos perguntar no que deve orientar a escolha de um professor, aquela pessoa a quem entregaremos algo extremamente precioso, que não é somente nossa voz — nossa voz é apenas a expressão disso tudo. Em primeiro lugar, precisamos ter confiança nele. Nem sempre o que um professor faz está de acordo com as nossas expectativas ; ele tem que nos levar por caminhos tortuosos, que nos tirem da nossa zona de conforto e que nos desafiem — mas é importante saber que isto nada tem a ver com um ambiente hostil. Se não confiarmos no critério de quem nos orienta, não seremos capazes de nos lançarmos ao desafio e, consequentemente, não poderemos aproveitar ao máximo nossas experiências. Mas é importante ressaltar que um professor está a serviço de seu aluno. Este não busca praticar para atender a expectativas, anseios ou gostos do de quem ensina. Ao orientarmos uma técnica, temos que buscar a verdade de cada um, mirar naquilo que vá atender o estilo e as ambições do aluno bem como suas particularidades vocais. Penso que o professor tem um papel de educar não só a voz, como também o ouvido do seu discípulo, no sentindo de ampliar o universo musical, orientar no que se deve estar atendo durante uma escuta e desfazer alguns mitos.
Por fim, creio que a relação entre professor e aluno tenha que ser baseada em franqueza e honestidade. Primeiro porque o aluno não está lá para impressionar quem o ensina, pelo contrário, deve se sentir guardado e acolhido para entregar suas dificuldades e desconfortos para que trabalhem juntos; é preciso que chegue a uma aula disposto a cantar da mesma maneira que o faz em casa, com seus amigos e familiares, para que não produza características novas e distintas no momento do trabalho vocal. Segundo porque o que possibilita qualquer aprendizado é o questionamento, a curiosidade; o aluno precisa ter um canal aberto para tirar suas dúvidas com seu professor, expor as questões que ele mesmo levanta dentro de si sem medo, mesmo que a resposta seja algo como “tudo a seu tempo”. O que não se pode perder de vista é que a formação de uma voz se faz da amálgama entre aquele que ensina e aquele que aprende, e estes precisam ser aliados no objetivo, dividindo a mesma parcela de responsabilidade. Um aluno sem professor está perdido, sem rumo ou orientação, buscando seu caminho no tato; um professor sem aluno não é ninguém, porque se encerra em si mesmo seu trabalho, sem um outro indivíduo para materializar seu conhecimento.

Sobre Marília Zangrandi

Cantora, atriz, intérprete e professora de canto carioca. Fotógrafa quando pode. Redatora, editora, moça do café e censora do www.juntosnocanto.wordpress.com. De vez em quando, terapeuta.
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Uma resposta para A relação criadora

  1. Onde fica o botão curtir?? 🙂

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